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Nessa madrugada úmida do sábado do feriado de Corpus Cristis, é a tua “croniquinha, croniqueta” que me causa uma sensação que vem, especificamente, do estômago. Sabe o chamado “bolo na barriga”? É claro que as sensações não vem da barriga, mas se elas vem junto com as lembranças, em que lugar ou nãolugar da minha história as reencontro? E de onde vem o prazer, ao recordar os detalhes das coisas vividas?
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Foi no início da tarde, porque a luz do sol preenchia completamente o espaço da sala, confortavelmente. E além dos livros, naquele dia havia um aparelho de som em cima da sua mesa. Eu não lembro bem exatamente as palavras, mas ele disse que deveríamos primeiramente ouvir a música, acompanhando a letra pelo nosso livro e que abaixo dela seguiam umas questões para responder.
Eu tinha minha cabeça baixa sobre o livro e seguia os versos com meus olhos e ouvidos concentrados na sina daquele operário, naquela melodia crescente. O som estava bastante alto. Só eu sei o impacto que me causou aquela música quando, de repente, o que me parecem ser trompas, trombones, trombetas, tambores trouxeram o trágico fim do operário, como se estivessem a gargalhar de sua condição, carregando meu peito de ansiedade e angústia.
E eu que ainda nem sabia daquele músico, nem de sua importância para a música e poesia brasileiras... E veio então o jovem de óculos e chapeuzinho nos apresentar essa música, numa calma que hoje, ao relembrar, me causa incômodo. Como pode aquela serenidade ao nos colocar olhos e ouvidos frente a tal música?! Sem palavras honrosas ao poeta, sua aparente neutralidade diante daquele momento me permitiu ter o prazer de descobrir, com meus próprios olhos e ouvidos, em anos seguintes, o restante da obra do poeta.
Não sabia eu, naquele dia, que levaria o poeta ao longo da minha vida, que eu o reviveria sempre. Será que, naquela aula, o jovem de óculos e chapeuzinho possuía a real dimensão do alcance daquele momento, no tempo e no espaço de nossas histórias de vida, ao nelas inserir aquela poesia? Ou ele, provavelmente, imaginava ser aquela mais uma das nossas aulas sobre a literatura brasileira em que alguns poucos dedicavam a atenção merecida?
O seu olhar nos penetrava (o dele ou do poeta?). Sempre com a mesma calma da outra vez, ele conseguiu prender-me ao mundo que nos apresentava. Ele inspirou o cordão que me vincularia a cada um dos escritores lidos e aos que eu ainda conheceria. Cecília, Clarice, Machado, Aluízio, Augusto dos Anjos, Saramago, Camões, Jorge Amado, tornaram-se parte, não só das minhas lembranças, como da minha constituição enquanto ser sensível à arte de manusear as palavras. Porque foi como se usasse suas mãos quando, numa tarde, ele falou de Vinicius aos nossos ouvidos. Escreveu no ar as palavras.
O jovem de óculos e chapeuzinho inscreveu suas palavras, seus gestos e o som da sua voz na minha lembrança, residentes em algum lugar do que sou hoje. Abriu uma porta da minha vida para a literatura. Hoje tenho amor aos livros, ao sublime ato da leitura. As minhas lembranças portam tua luz e sombra que hoje me parecem eternizadas.
Escrito em: 05/06/2010
Foto: desconhecido.
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